Amigo,
Tinha que a escrever. Quanto antes melhor, sob pena desta ferida nunca mais deixar de latejar, mesmo que a sinta cicatrizada. Sinceramente, não sei se estou movido pela necessidade de uma espécie de catarse, ou se foi pela leitura das cartas do encadernador de borboletas, que o Vasco tem publicado no seu blogue, que fui relembrado do poder que as palavras encerram. Elas podem revelar a intensidade da dor, podem ser apenas libertadoras ou, espero eu, podem tentar limitar os estragos do passado. Será tão-somente uma derradeira necessidade de tentar ser sincero com a vida? Sei lá! Com os erros de auto-avaliação que tenho no currículo, nem posso me dar ao luxo de aclarar com segurança estes assuntos. Sinto apenas que hoje chegou a altura de o dizer. A ti.
Recordo o inicio como se fosse ontem. Primeiro, a imagem de um sorriso franco e sereno. Depois como a tua personalidade foi ganhando terreno. Revelaste-te como alguém presente, interessado e gradualmente dedicado. Reparei que não o eras apenas comigo, era a tua maneira de ser. Se podias fazer algo – pequeno ou imenso - para animar o dia dos que te rodeavam, fazias. Sem contas, estratégias ou interesses. Espontâneo. Como deixar de reparar?
Fui afortunado em desenvolvermos uma amizade. Ela cresceu alicerçada nas rotinas do quotidiano. Coerentemente, tornaste-te em alguém que nunca se cansou de estar presente nos bons e maus momentos. Nunca, nem uma única vez, consigo recordar ter ficado sem o teu apoio. Cumplicemente começamos a saber comunicar sem palavras; bastava olharmo-nos e sabíamos como tinha corrido o dia, o que pensávamos de certa situação ou se existia algum pensamento inquietante. As incertezas, as duvidas, as alegrias e as expectativas eram divididas como uma tablete de chocolate. Quando queria rir das pequenas cusquices do dia-a-dia, escutavas e tinhas sempre algo divertido para acrescentar. Até sabia que, quando, na minha ausência, existia alguma conversa com um enfoque negativo sobre mim, a tua expressão era tão feroz que ninguém continuava. Para dizer a verdade, também me chateei com alguns que não iam com o teu feitio.
Quando certa vez disseste que me consideravas o teu melhor amigo, o meu sorriso interior foi tão grande que ia-me saindo pelas orelhas. Senti-me com uma sorte consideravelmente maior do que se me tivessem informado que tinha ganho o euromilhões.
Mas, foi nesse patamar que comecei a sentir-me gradualmente atordoado, confuso e com um peso enorme na minha alma. Estava a trair-te. A trair a tua sincera dedicação; a trai-me, estupidamente, também a mim. O que para ti era amizade pura e empenhada, para mim começou a ser mais do que isso. Eu sinceramente tentei controlar o curso dos acontecimentos, eu quis travar o meu sentir com a mais intensa das forças, mas tudo fugiu ao meu controlo. Era como estar no meio de um furacão a tentar controlar um cata-vento. Uma moinha enjoativa gradualmente possuiu a minha cabeça e pausadamente entranhou-se em todos os cantos do meu corpo.
Lembraste daquela vez em que choraste? Não sei como forcei as minhas mãos a ficarem paradas; não sei como as convenci a não limparem delicadamente as tuas lágrimas; não sei como não guardei as tuas entre as minhas – qual jóia delicada - e te disse: estou aqui.
(Não quero continuar com exemplos, pois está-me a ser mais doloroso do que pensava recordar estes momentos fragmentados. Penso que já entendeste onde quero chegar; o que quero te dizer.)
Consegui arduamente, neste mar de sentimentos aterradoramente revoltos - onde tanto me sentia feliz, como, na mesma exacta medida, miserável - encontrar um farol de lucidez. Cheguei a entender que, por gostar tanto de ti, tinha por missão prioritária, proteger-te de mim. Assumi, sem qualquer problema, que a tua felicidade era mais importante do que tentar enlaçar-te na minha teia de afectos desequilibrados.
Senti uma dor fina de morte, bem como, simultaneamente, uma enorme paz, quando comecei a trilhar o caminho do afastamento. Afinal, o bem-estar de quem amamos é - deve ser - o objectivo final e supremo da nossa acção. Foi assim que me convenci, e é assim que continuo pensar. Vejo-te assim, neste momento, pelas lentes do distanciamento. Tenho-te na memória, num patamar especial, sem dúvida, mas sem a esmagadora sensação da paixão. Não posso dizer que o preço foi baixo, mas caramba, tudo o que vale a pena é caro; não há borlas nesta vida!
Como bónus, aprendi a conhecer-me. Deixei-me de mascaras e artifícios engenhosamente elaborados para iludir-me. Soube cristalinamente o que era desejar e amar. Na minha frustração, tento renascer; no meu sofrimento, tento edificar as fundações da minha paz.
(Assim, já sabes porque a partir de uma dada altura eu era emocionalmente inconstante. Já sabes porque a certa altura comecei a afastar-me.)
A suprema ironia é, neste momento, imaginar que podes muito bem ler esta carta. Ainda um belo dia vais fazer uma pesquisa, com o Google, e vens dar aqui. Estou a imaginar-te a ler isto e, ao abanares a cara de aversão, murmurares qualquer insulto barato dirigido aos malucos que andam a escrever neste tipo de blogues.
E nem imaginas que tu és o destinatário! Que aquele teu amigo - nas tuas palavras - tão razoável, tão hilariante e leal, nos seus profundos pensamentos adorou-te como se fosses um deus e que, sem outra alternativa, deixou aqui uma carta para purificar-se dessa fase e tentar seguir em frente na vida. Seja lá o que isso queira dizer.Bem Hajas! Que tenhas tudo o que de melhor a vida te proporcionar. Porque mereces e porque eu quero isso com toda a minha força.
Um abraço!