Existem locais assim. Míticos e obrigatórios na vida de uma pessoa. Retalhos de terra onde algo marcou a nossa existência. Locais onde necessitamos regressar física e mentalmente, como se uma especie de ritual fosse; para tentarmos encontrar uma espécie de bússola que nos indique uma espécie de futuro. Com os pés enraizados nesse espaço, desejamos respirar as vivências e as memorias que aí flutuam.
Um desses meus locais é uma praia. Uma linda praia, diga-se de passagem.
Começa por ser um dos ícones dos meus tempos de inocência. Os verões de uma criança a correr pelo areal, a fazer castelos de areia, a apanhar escaldões e a pedir insistentemente gelados e bolas de Berlim que os vendedores apregoavam. Que tanto brincava, como zangava-se com os amiguinhos que nesse dia estivessem disponíveis. Tempos de um ritmo sem relógio, de uma agitação inspirada pela brisa, de corridas e lutas com as ondas. São das memórias onde mais gosto de me refugiar, de me esconder. São a pureza que por vezes tenho que ir buscar para tentar limpar-me. Para tentar esfregar arduamente a minha pele e pensamentos. Por isso este local encerra um dos maiores tesouros da minha existência.
Ambiguamente, foi um local cruel também.
Foi onde, até agora, conheci mais de perto a morte. Já adolescente, num dia de marés traiçoeiras, fui arrastado confusamente para o alto mar. Tentava gritar por ajuda, mas o mar teimava em calava-me a boca com a sua água salgada. Em desespero instintivo comecei a bracejar como pude. Foi o que me salvou. A última imagem que recordo foi de duas pessoas a lançarem-se ao mar na minha direcção. Depois, o sufoco do sal, a flutuação de um desmaio gradualmente imposto. Recordo de acordar no areal com muita gente á minha volta, a massajarem-me, a darem-me bebidas quentes e até aguardente. Fui a triste estrela do dia naquela praia.
Medito nesse dia. Por vezes arrisco a pensar se não teria o destino determinado que essa deveria ter sido a data, e essa a maneira, de encerrar a minha existência. Mas, alguém lhe deu a volta. Hoje, tantos anos depois, penso ocasionalmente nas dores que poderiam ter sido evitadas para mim e para outros se o mar tivesse feito bem o seu trabalho. Que solução tão simplesmente prática para um problema que ainda não tinha assomado na totalidade do seu esplendor. Não é todos os dias que penso assim, mas penso…
Gosto de ir lá no verão. Esta praia pode estar a abarrotar de gente que ainda parece que está vazia. É bom ela ser assim. Não gosto de me sentir apertado em praias pequenas. Gosto da sensação de imensidão. Gosto também da serra por cenário.
Mas gosto ainda mais de ir lá no Inverno. É mais minha. Gosto de ver as pessoas a passear com os seus cães, gosto de ver os pais a ensinar aos filhos a içar um papagaio de papel, gosto de molhar os pés enquanto caminho, gosto de me sentar nas ruínas de madeira dos bares que descansam do verão e observar. Gosto da solidão com corpo de maresia e com alma de areia.
Inocência, morte e solidão. Que palavras aparentemente tão incomuns para se conjugar com a palavra praia.
Com a minha praia.