quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Oráculo mural


As paredes da minha cidade falam comigo. Colocam-se à minha vista. À minha frente. Lembram-se das frases mais mortiferas que conseguem. Crueis até. Mas importam-se. E afirmam a sua lucidez ao lado de uma mancha de humidade.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Toque

Não paro de sentir aquele arrepio. 

Aquele toque fugaz que a nada na minha vida se comparou. Talvez um dia no futuro possa ter termo de comparação, mas até aquela altura, nada de nada. Um toque rápido, mas pleno de intencionalidade. Inundado de desejo e intenção. Olhos nos olhos e pele com pele. Não paro de pensar como afinal as coisas são. Ou deviam ser para mim. Como o são - banalmente - para as pessoas que existem à minha volta. O seu normal é um luxo astronómicamente alto para mim. Impensável até o momento. O que sei agora serve de referencia mas não de padrão. Infelizmente.

A minha pele não tinha um registo desses. Nada existia na sua memória de um contacto que juntasse o desejo com a intenção a dançarem num tango com a música de dois olhares que não se envergonhavam de se fixarem. Caramba! Afinal isto é assim...

Não há dia que não feche os olhos, nem que seja a fingir, e vá buscar esse momento. Para continuar a viver. Agora sei. Agora sinto. Agora a minha pele é minha cúmplice. Agora sei arrepiar-me de prazer.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Todos os dias

Todos os dias saio para a decisão de um amor sem protagonista. Encosto-me às paragens de autocarro e aceno subitamente a alguém que passa. Por vezes retribuem-me o gesto e ficamos ambos sem saber se por graça, se por um escuro reduto de uma franqueza cada vez mais rara. Tens tempo para um estranho? A que horas me poderias dizer o teu nome? Conheço uma igreja que ardeu, conheço outra que é muito muito pequena. Escuta, no meio desse teu deserto, ao passar a caravana do luxo, será que és capaz de suplicar: água?

És capaz? És capaz ainda de suplicar?


(Vasco Gato, A prisão e paixão de Egon Schiele)


terça-feira, 29 de outubro de 2019

(V) ida

Na minha morte, deste-me vida. Na minha ressurreição, mataste-me. Sob escombros putrefactos voltei a respirar. Sob a terra molhada de muitas estações sem vida. Sem flores. Meus dedos tocaram os despojos sombrios. As tábuas enegrecidas, moles até, da minha prisão. Do que era antes a morada do meu coração. Passeei tranquilamente os dedos sobre essas memórias. Continuo a respirar-te. A sentir-te. No aperto mais trágico que uma vida pode ter, estás aqui, mesmo que não o soubesses. Não me mataste. 

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Sofia

Não te chamo para te conhecer
Eu quero abrir os braços e sentir-te
Como a vela de um barco sente o vento

Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser

Peço-te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

In the edge

Meio abismado, meio revoltado, meio desapegado. Esta crescente estupidez da desconfiança, do ódio ao que é diferente. Como é possível que não se aprenda nada da História? Como acreditar que os nossos problemas comuns desaparecerão se fizermos os "outros" ficarem bem longe de nós? Que sociedade pode viver com estes conceitos de contos de fadas estragados?

Que avanços gigantesco foram feitos, mas alguns continuam a pensar apenas com o instinto réptil de sobrevivência. Que nem sequer isso é...

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Um David Fonseca nesta fase dá um toque à coisa


segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Arco

Nada espera
a oferta
o destino
o merecimento
a dádiva

Apenas
e só (apenas)
as avenidas
labirínticas
iluminadas pelo círculo de luz

Tu
na esquina
das esquinas
na aguarela
da montra
impossível

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Pum


São tempos de dor e espelhos trágicos. Das manchas que rastejam na pele e não se vão. Trilho todos os caminhos que deveria e só encontro becos atrás de becos. Como se a vida fosse uma coleção de anomalias puramente feitas com o objetivo de destruir tudo o que importa. Só deixa a existência. Apaga qualquer raio de sol o mais depressa que pode. Sufoco na tremenda ironia que é servida de bandeja. Tudo no nada. A posse na miragem. A dor na doçura. A tragédia travestida de comédia chique. Tive o céu como introdução e o inferno como segundo capítulo.

(Venho aqui bater com a cabeça na parede, pois é onde tudo continua a fazer sentido. Bem corri ceca e meca para nada. Talvez para cumprir a peregrinação dos que tem a mania que possuem valores nobres. Talvez. Aqui é o muro das lamentações)

É uma dormência nova. É o tudo de uma vida que teve tudo e não soube. É a dor de saber o que não se pode ter. É a merda esculpida numa estátua de jade. É a raiva engatada num fogo de artificio.