Dei comigo, ao tentar enfunar o nó da gravata, a observar-me fixamente ao espelho. Não porque me preocupasse a conjugação das cores da roupa, queria simplesmente olhar-me olhos nos olhos. Pode parecer um exercício ridículo, e de facto, pensando bem, é. Com espectadores não atrevo-me a tal figura.
Quem recorde Aparição de Virgílio Ferreira, talvez não estranhe tal gesto. Recordo bem a parte em que Alberto, enquanto criança, tem a surpreendente visão de si mesmo perante o espelho.
Até ler o livro pensava que esta coisa absurda era mais um exclusivo meu. Desde cedo, desde que lembra-me ser gente crescida, que custava olhar-me fixamente no espelho. Verdade. Não sei porquê, apenas não me sentia confortável. Fazia os habituais rituais de higiene mecanicamente e mal podia, o olhar era automaticamente dirigido para os lados ou para baixo. Havia latente um mal-estar que não sabia explicar bem. Apenas existia e não sabia lidar com aquele misto de vergonha, medo e alguns outros pequenos ingredientes. Ali perdia todo o meu poder e pose.
Por vezes ousava desafiava-me. Olhava-me com um ar sério, enquanto agarrava tensamente o lavatório, e formulava mentalmente a pergunta: quem és? Repetia-a e repetia-a até sentir a cabeça vazia. Então era como se tudo ao redor do espelho gira-se num gigantesco caleidoscópio que deformava a realidade. Doía.
Fui com o passar do tempo suspeitando que por trás deste estranho espectáculo solitário existia uma inconformidade com a vida; ali estava, sem tirar nem pôr, a evidência de que não era eu quem vivia. Ali estava a pessoa a quem eu não podia enganar com tretas; ali estava a pessoa quem eu tentava sufocar cada dia; ali estava a pessoa de quem eu não podia fugir, nem que fosse para o ermo mais isolado da Terra.
Foram todas essas coisas que recordei num ápice, ao voltar a confirmar que o nó da gravata estava a meu gosto. Sorri. Continuei a olhei-me ao espelho. Estou num processo de reconciliação com o rapaz daquele lado. Já percebemos que estamos no mesmo lado. Somos amigos, confidentes e cúmplices. Por nossa causa o mundo já não gira à maluca. Mesmo que venham tempos difíceis - que virão! - pelo menos estamos em paz, e isso é uma mais-valia.
9 comentários:
Todos nós temos "lutas" de vez em quando com esse gajo; mas acabamos (quase sempre) por nos entendermos...
Abraço.
São monetos estranhos aqueles em que nos encaramos dessa forma em frente ao espelho.
À muito que não faço o jogo a que chamo "saltar do meu corpo", do género repetir uma palavra até que ela deixe de fazer sentido, também dá para fazer isso em frente ao espelho e depois levar com uma dose de pensamento como a que tás a ter. Quantas pessoas farão isso, até hoje só uma me compreendeu!
I wonder!
Abraço
São monetos estranhos aqueles em que nos encaramos dessa forma em frente ao espelho.
À muito que não faço o jogo a que chamo "saltar do meu corpo", do género repetir uma palavra até que ela deixe de fazer sentido, também dá para fazer isso em frente ao espelho e depois levar com uma dose de pensamento como a que tás a ter. Quantas pessoas farão isso, até hoje só uma me compreendeu!
I wonder!
Abraço
Por vezes, só vemos no reflexo o que queremos ver. É dificil fugir da realidade, mas ele há quem consiga disfarçá-la echendo a imagem de floreados e coisas bonitas. até que o espelho se parte.
"Estou num processo de reconciliação com o rapaz daquele lado. Já percebemos que estamos no mesmo lado. Somos amigos, confidentes e cúmplices. Por nossa causa o mundo já não gira à maluca. Mesmo que venham tempos difíceis - que virão! - pelo menos estamos em paz, e isso é uma mais-valia."
Nada melhor para nos ajudar a compreender a vida de uma forma madura e tranquila do que sermos simultaneamente actores e espectadores de nós mesmos!
É também um sinal de lucidez e inteligência...
Um abraço amigo!
não há nada melhor, do que estar em paz com nós próprios. Eu já estive em grandes lutas comigo mesmo, uma altura fui anorético, comia dois iogurtes ao almoço, pesava 75 kilos para 1m90 e sentia me gordo....
Agora com 110kg para 1m90, nunca me senti tão bem comigo próprio, até faço nudismo...
As voltas que damos haha
Pinguim,
Que remédio! Ou entendemo-nos com ele, ou ele não nos larga. É do tipo “podes correr, mas não podes esconder-te”
Abraço!
F3lixP,
Acho que essa técnica também estava descrita na Aparição. Lembra-me as técnicas de meditação orientais, não é? Olha, o importante é que saibamos entendermo-nos, seja lá como!
Bem hajas pela repetição…
:-)
Abraço!
Sérgio Falé,
Tentamos disfarçar, mas realmente não chega, não senhor! E se o espelho não se parte, partimo-nos nós próprios. Olha, gostei muito do teu texto sobre o espelho; não digas que não sabes escrever bem.
Com senso,
Não é fácil sermos simultaneamente actores e espectadores de nós mesmos. Mas para isso é bom contar com amigos que sejam francos connosco. Que sabendo dizer o que fizemos bem, também sabem “limar-nos as arestas” quando necessário.
Abraço!
TUSB,
O teu testemunho é muito interessante!
Ainda bem que alcançaste essa paz contigo próprio. Não leves a mal de brincar, mas no meu caso espero parar o meu desenvolvimento pessoal antes da fase do nudismo. É que não entra muito no meu estilo…
hehe
Abraço!
Mas devias fazer nudismo, aconselho a qualquer pessoa... é libertador, foi um conselho que um grande amigo me deu, e resultou!! Não foi o fim do ciculo que me levou ao nudismo, mas o nudismo que me levou a ser feliz comigo mesmo... e eu não era nada de essas coisas...
É estranho e instantaneo o efeito que tem sobre nós, e um amigo meu que tinha problemas de auto-estima, aconselhei-lhe o mesmo, e está definitivamente mudado.
Abraço
TUSB,
Obrigado pelo teu testemunho. Mas com todo o respeito por quem o faz, creio que vou pensar a sério no teu conselho na minha próxima reencarnação.
(Não leves a mal que sou brincalhão...)
Abraço!
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