sábado, 12 de setembro de 2009

Cento e dez minutos (aproximadamente)

Aquele filme não seguiu o percurso habitual.

Não sei como, não passou no crivo da antevisão censorial prévia. (Censura seria uma palavra forte para alguns, que apenas definiriam tal acção como “uma escolha informada a fim de sermos poupados a coisas que, em nome do divertimento, prejudicar-nos-iam”). Talvez supôs-se que o facto de ostentar grandes nomes da sétima arte fosse uma garantia que dispensava preocupações; ou as fotografias de promoção. E o titulo. Sim, o título era um tanto ou quanto inocente.

Assim que, no cinema, naquela escuridão que envolve um filme, aconteceu o inevitável. Perante o passar do tempo, o tempo de exposição à história; perante o acompanhar, o acompanhar dos pensamentos e acções das personagens, o ritual surgiu. O leve barulhinho das curtas movimentações corporais na poltrona, quais pequenos sinais de uma incomodidade interior. O toque discreto, mas inconfundível q.b. no braço ou na perna do vizinho, para assumir uma perplexidade inocente. Cada um podia assim, desta maneira, anunciar que não era por gosto, nem sequer por uma empatia cristã, que via aquelas coisas. Podia assim ficar claro que esperava ansiosamente a aparição da escuridão no ecrã e de luz na sala para trilhar o caminho de saída. Era o mínimo, a pequena acção purificadora pela estada naquele local onde destacavam-se momentaneamente, como que num altar, personagens desconexos e com atitudes pecaminosas.

Eu senti-me paralisado. É verdade que nem sequer me lembrei de dar os tais sinais tácteis ao colega do lado. Mas, uso a expressão paralisado para tentar explicar o que sentia. Mas não sei se a palavra é a mais exacta para definir o meu estado de espírito naquela ocasião. Não fiquei bloqueado, atónito ou com as mãos agarradas á poltrona em pânico. Nada disso. Foi como se estivesse perante um “dejá vu” que nunca tinha vivido. Era um filme completamente estranho e no entanto sentia que sabia como ia acabar. Começou logo nas primeiras palavras. Palavras de despedida escritas num papel arrumado dentro de um envelope. Uma despedida da vida; de uma vida. Palavras que me chocaram pela brancura. Pela pureza. Pela semelhança. Tudo desfez-se. Era apenas eu e aquele filme. Algo ia acontecer, a qualquer momento, que invadiria o meu reservado espaço interior e eu não sabia se estava preparado para tal facto. Foi essa sensação. Se a palavra paralisia é adequada, não sei.

The end. Quando terminou, não sei se fiquei contente ou triste. Apenas pensei que tinha que, perante a luz reveladora da sala, assumir a postura politicamente correcta. Cara alegre típica de quem saía do cinema. Mas sabia que era urgente encontrar um espaço e tempo para ficar a sós e tentar entender o que vi. Senti, com a certeza que as borboletas no estômago dão a alguém, que aquele filma tinha mais coisas para me contar do que as que naquele momento eu saberia repetir de memória.

Saímos. Encontrei-me submerso por uma onda reprovadora do filme. (“…mulheres a beijarem-se?”). Sorria ao mesmo tempo que pensava na gigantesca ironia que aquele filme cada vez mais assumia ser. Se eu, num acesso de desespero louco ou um fino rasgo de humor negro, quisesse enviar uma mensagem encriptada sobre o que era a minha vida, sobre o que era a minha cabeça, sobre o que era a minha luta, não teria feito melhor. Ali foram ditas em voz alta, perante aqueles que pensam conhecer-me, frases que repito na minha pele, nos meus sonhos, como dores.

Ali estava mais uma vez confirmadas as minhas suspeitas. Dois mundos entrelaçados mas divididos pel’As Horas.

6 comentários:

João Roque disse...

Excelente texto muito pessoal, mas acertado, sobre um filme e sobretudo sobre uma sociedade.
Confesso que no decorrer da leitura, tentei adivinhar qual filme seria; e afinal, até nem era difícil...
Abraço.

Tongzhi disse...

O filme é, ao mesmo tempo, um filme de época e um filme moderno, maravilhosamente interpreta pelas 3 actrizes principais. Não sei se o tema central possa ser considerado o de aflorar a homossexualidade feminina em várias épocas.
Quanto ao que ele possa ter significado para ti e, sobretudo, o que te fez "viver" esta maravilhosamente ilustrado na frase final - Dois mundos entrelaçados mas divididos pel’As Horas
Abraço

Tongzhi disse...

* está

Socrates daSilva disse...

Pinguim,
Tongzhi,

Bem hajam.
Abraços!

anjo disse...

Deixar um abraço e agradecer a visita_____________________ volta sempre sff...

Socrates daSilva disse...

JotaSP,
Abraço recebido.
Outro!