sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Demónio

Então, pelo ermo da minha enorme fadiga, acometia-me às vezes o demónio solitário que só agora eu ia conhecendo. Vinha devagar, de olhos turvos e magoados, e vertia-me lentamente, sobre a fronte, um óleo espesso e quente. De outras vezes, sentava-se-me apenas diante, descansava o queixo entre as mãos e fitava-me em silêncio. Ou de olhar duro, serenamente cruel, esmagava lentamente nas mãos de aço o meu pobre coração, até deixá-lo numa massa de sangue, e atirava-o depois para trás das costas sem me desfitar. Eu sorria, chorava até ao íntimo dos ossos, mas abandonava-me à dor com um prazer vicioso. Muitas vezes, forçado a enrolar-me na balbúrdia dos recreios, esquecia-me dele e gritava, desvairado, o meu acesso de alegria. Mas, a meio do delírio, subitamente, eu via o meu demónio encostado a um castanheiro, de costas para mim, como se tivesse a certeza de que eu o iria procurar. E eu ia, realmente, trespassado logo de negro, abandonava as correrias e juntava-me devagar à minha solidão. O meu companheiro tomava-me então o braço lentamente, ou metia-me pelos olhos dentro os seus dedos longos e recurvos, ou simplesmente olhava impassível os castanheiros nus sobre a terra vermelha e enregelada.

- Menino! Que está aqui a fazer? Vamos já brincar como os outros.

Virava-me bruscamente, dava de caras com o Perfeito. Regressava então, sucumbido, ao recreio, mas não podia tirar os olhos do demónio do meu silêncio.

(Manhã Submersa, Virgílio Ferreira)

8 comentários:

João Roque disse...

Tenho a certeza de que este livro do Virgílio Ferreira, te marcou muito; até a mim...
Grande abraço.

Anónimo disse...

Pois... Abraço!

No Limite do Oceano disse...

Um excerto peculiar, no entanto foco num tema muito subjectivo que é que um demónio. Será que quando nos vemos ao espelho não podemos ser um? não é que queria levar esse excerto para um campo minado mas já que a onda azul mostrou o seu carácter, o melhor é aproveitar este estado de espírito para fazer valar o seu valores. Ou será que um demónio não é mesmo isso? Estou confuso :-S

*Hugs n' smiles*
Carlos

Tongzhi disse...

Um livro de culto, uma marca para quem o leu.
Gostaria de o reler, mas tenho tanta "coisa" em fila de espera...

Luís Galego disse...

livro que foi objecto de uma excelente adaptação por parte do Lauro António....gostei muito do excerto por ti escolhido...

João Roque disse...

Tens um recado para ti lá no meu "buraco" (post de 18 do corrente)...

UN VOYAGEUR SANS PLACE disse...

Os maiores demónios sempre serão os que dentro de nós mesmos estão.

Socrates daSilva disse...

Pinguim,
É uma grande e intensa história; daquelas que, por vezes, são visualmente imperceptíveis e que existem tantas e tantas vezes ao nosso lado. Sem se suspeitar…
Abraço!


Arion,
É não é?

Abraço!


Carlos,
Não resisto a ir para terreno minado, nem que seja por um pouco.
Somos um pouco demónios de nós mesmos? Absolutamente! Perante o espelho, sem mascaras, sabemos que o nosso pior inimigo somos nós mesmos.
Mas, existem outros demónios - quiçá mais venenosos, incontroláveis e dolorosos - que são aqueles que no decurso da vida outros nos fizeram o favor de oferecer. E tal qual um emplastro, estão lá. Com a cabeça em cima do nosso ombro a sorrir para a fotografia em que nós sorrimos também.
(eu avisei que era um terreno minado…)

Abraço!


Tongzhi,
Lindo, lindo, lindo…
Estou a relê-lo, como obviamente se nota.
:-)
Abraço!


Luís Galego,
Ando á procura de comprar o DVD, mas parece que está esgotado em toda a parte.
Em relação ao excerto, é muito sentido; mas tenho mais uns “em fila de espera”…
Abraço!


Pinguim,
Já lá irei…
Obrigado!


Flor do Sul,
Obrigado pela visita e comentário.
Esses demónios são mesmo os piores!
Abraço!