terça-feira, 3 de novembro de 2009

Fragmentos de um dilema

“A devoção tinha ido pela borda fora. De que servia rezar quando sabia que a sua alma ansiava pela própria destruição? Um certo orgulho, um certo respeito impediam-no de oferecer a Deus uma única oração à noite, embora soubesse que Deus tinha o poder de levar a sua vida enquanto dormia e enviar a sua alma para o Inferno, antes que pudesse suplicar-lhe misericórdia. O seu orgulho no seu próprio pecado, o seu temor a Deus, desprovido de amor, diziam-lhe que o seu pecado era demasiado grave para ser expiado no todo ou em parte com uma falsa homenagem ao Omnividente e ao Omnisciente.

Em relação aos outros, não sentia nem vergonha nem medo. Aos domingos de manhã, quando passava pela porta da igreja, olhava friamente para os devotos, que se aglomeravam, de cabeça descoberta, em filas de quatro pessoas, no exterior da igreja, moralmente presentes a uma missa que não podiam ver nem ouvir. A sua embotada piedade e o cheiro enjoativo do óleo capilar barato com que tinham untado as cabeças afastavam-no, com repugnância, do altar em que rezavam. Desceu ao pecado da hipocrisia diante dos outros, céptico perante a sua inocência que ele conseguia iludir tão facilmente.

A falsidade da sua posição não o incomodava. Se, por momentos, sentia um impulso de se erguer do seu lugar de honra e, confessando diante de todos a sua indignidade, sair da capela, bastava-lhe olhar para as caras deles para se abster.

O seu pecado, que o tinha ocultado da vista de Deus, aproximara-o mais do refúgio dos pecadores.

Era estranho. Tentou compreender como aquilo podia acontecer. Mas, o crepúsculo, crescendo no interior da sala de aulas, cobriu os seus pensamentos. A sineta tocou."


James Joyce, Retrato do Artista quando Jovem.


4 comentários:

Anónimo disse...

É curioso que ao irlendo um texto, sem saber o nome do seu autor, tentava adivinhá-lo; mas fiquei muito surpreso ao encontrat o nome de James Joyce - nem eu sei porquê...
Abraço.
João Carlos

Violeta disse...

Fiquei curiosa com a escrita do autor.
Bjocas

com senso disse...

Caro amigo

A universalidade e intemporalidade desses sentimentos e sensações perante os outros, e até perante Deus, que nos chegam pela mão dos grandes escritores, dão sempre o conforto de sabermos que não estamos sós... muito embora possamos estar a passar pelo mesmo sentindo-nos sózinhos.

Um abraço amigo

Socrates daSilva disse...

João,
É o primeiro livro dele que estou a ler. Esta passagem é que surpreendeu-me.
Abraço


Violeta,
Estou com vontade de ler o famosíssimo "Ulisses" e decidi preparar-me por primeiro ler este.
Bjs


Com senso,
Creio que tens razão...
Abraço.