terça-feira, 10 de novembro de 2009

A visível face oculta

Acho muito interessante a actual popularidade da expressão “Face Oculta”. Comecei por pensar que quem tem, como parte das suas funções, que atribuir nomes de código a estas operações deve ser muito imaginativo. Deve ter como uma das suas preocupações, com toda a probabilidade, transmitir pedagogicamente alguma mensagem ao público. Neste caso especifico, penso que quer dizer-nos que esta acção foi pensada para, além de impor o natural castigo a quem age fora da lei, expor a face corrupta, oculta, de uma sociedade que todos pensávamos bonita, justa e elegante.

Dá-me graça. Quem escolheu o nome deve ser um brincalhão de primeira água. Só pode ser. Quem é que no seu perfeito juízo, sendo conhecedor da realidade e mentalidade portuguesa, assume que a corrupção é uma coisa oculta? Que só quando escarafuncha-se com arte e engenho é que são encontradas provas? Ninguém!

A centenária cultura lusitana, começando no país profundo e rural de Vale da Mula e terminando nos restaurantes urbanos da haut cuisine onde a elite toma as suas sopinhas diárias, sempre assumiu clara e orgulhosamente a filosofia do lucro fácil fintando, se necessário, a ética e a lei. Qualquer forasteiro, mesmo proveniente dos antípodas, com alguns dias de vivência neste cantinho, vê claramente que o sistema funciona assim. Cunhas, compadrios, presentes, facturas falsas, números retocados, subornos e quejandos. Como é que se pode com seriedade chamar a tal tipo de mentalidade “face oculta”? É uma face assumida e descaradamente sorridente.

Recordo que na altura do meu exame de condução, fomos um grupo de quatro a Lisboa. A professora perguntou-nos, com toda a naturalidade do mundo, se queríamos pagar uma certa quantia para dar ao engenheiro que ia examinar-nos a fim de garantir a aprovação. Assim de simples, como pediu que levássemos o Bilhete de Identidade. Não foi um caso isolado; era o procedimento normal.

Com o passar dos anos a coisa foi-se tornando até mais descarada. Numa conhecida escola de condução, no momento em que alguém ia fazer a inscrição, era-lhe apresentada duas tabelas: a normal e a que garantia a aprovação do exame. Esta segunda era mais cara porque já incluía “a gorjeta” para o examinador. Uma informação prestada no balcão de atendimento, clara e cristalina, em alto e bom som, que se existisse qualquer tipo de fiscalização seria detectada com uma perna às costas.

Exemplos destes são às resmas, provando ser corriqueiro este tipo de mentalidade. Uns praticam-no para agilizarem os inconvenientes da burocracia e outros simplesmente para ganharem dinheiro. Todos nós, de um modo geral, encolhemos os ombros, fechamos os olhos e pensamos que não é um problema nosso. Face oculta?

Interrogo-me porque, perante este caso, a comunicação social e alguns comentadores parecem umas virgens pudicas que agora descobrem com olhos esbugalhados o que se faz num bordel. Acho que o motivo não é o facto de saber-se que neste país existe gente corrupta. Gente rica e importante. O que eu imagino que cause escândalo, o que merece a vergonha pública e um castigo exemplar foi o facto de terem-se deixado apanhar. Isso sim é horroroso.

Porque se o sistema da cunha e do suborno continuasse a funcionar sem estas acções policiais, o pessoal fazia o que sempre fez. Quer numa conversa de tasca, quer no elegante restaurante junto ao mar, sorri e diz palavras de franco apoio a quem se gaba dos seus feitos em driblar o fisco ou se acha esperto por conseguir comprar mais uma propriedade à conta de “contabilidade criativa”. Claro, isto enquanto cantavam o hino nacional nos jogos da Selecção e gritavam: Viva Portugal!

6 comentários:

João Roque disse...

Disseste tudo sobre o assunto...e bem dito.
Abraço.

Snl disse...

Estou chocado com o teu post! Quem diria? Eu não fazia ideia que assim era, lol! E tu sabes imenso sobre isto tudo, hummm, lol, e não te vejo a cara!

Agora a sério, isto é giro sim senhor, e o melhor é que todos temos imensas histórias dessas para contar!

Abraço

Violeta disse...

E depois desta análise, o que dizer?
...
bjs

Mike disse...

Quase que digo que me tiraste as palavras da boca.
Quando no início de mais uma novela, desta vez a Face Oculta, me apercebi sobre o que versava o enredo, foi a primeira pergunta que fiz: Oculta???!!!
Só podem estar a brincar. Só podem,as mentes que inventam os nomes para estas coisas.
Mais valia porem os senhores que inventam os nomes para os furacões a dar nome às novelas que o nosso país é palco.

Anónimo disse...

É isso mesmo, está tudo dito...

Socrates daSilva disse...

Pinguim,
Obrigado pelo elogio, mas acho que ainda há tanto para dizer sobre este “cancro” nacional...
Abraço!


F3lixP,
Confesso que quando comecei a ler o teu comentário assustei-me. Mas, afinal estavas a ser um “ganda” brincalhão…
Giro? Isto dá é para chorar de feio que é!
Abraço!


Violeta,
Olha eu diria que castigue-se, que eduque-se, que se faça qualquer coisa, que assim, não vamos a lado nenhum.
Bjs


Mike,
“Face Oculta” é mesmo título de novela, não é? O povo tem o que merece e o que gosta, pelos visto…
Abraço!


Vasco,
O que ainda falta dizer…
Quer dizer no nosso país o que falta é fazer, agir, mexer de uma vez com todas com esta pasmaceira.
Abraço!