sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Desculpa-me

"Uma vez que alguma coisa de tão grave se passara comigo, parecia-me, ingenuamente, que eu deveria estar mudado. O espelho, porém, não me enviou senão o reflexo do meu rosto de sempre, um rosto inquieto, angustiado e pensativo. Passei a mão pelas faces menos para apagar o vestígio de um contacto do que para assegurar-me de que a imagem reflectida era bem a minha. O que torna a volúpia tão terrível é talvez o fato de que ela nos ensine que temos um corpo. Antes, ele não nos servia senão para viver; a partir de um determinado momento, sentimos que esse corpo tem sua existência particular, seus sonhos, sua vontade, e que, até à nossa morte, teremos de levar em conta a sua presença, ceder, transigir, ou lutar. 

(…)

Termino por lastimar-te sem, contudo, condenar-me severamente. É certo que te traí, mas não quis enganar-te. 

(...) 

Não tendo podido viver segundo os preceitos da moral estabelecida, procuro, pelo menos, estar de acordo com a minha própria. No momento em que decidimos renegar todos os princípios, é conveniente que conservemos, no mínimo, os escrúpulos. Assumi para contigo compromissos imprudentes que deveria ter mantido por toda a vida. 

Peço-te humildemente, o mais humildemente possível, perdão. Não por te deixar, mas por ter ficado por tanto tempo.”


(Alexis ou o tratado do vão combate, Marguerite Yourcenar)

10 comentários:

João Roque disse...

Posso estar enganado, mas a minha "leitura" dos teus últimos posts, indica-me que andas a "arrumar a casa"; se assim é, isso é bom, para ficares com espaço suficiente para te sentires bem...
Abraço.

com senso disse...

Caro Amigo

Este livro foi para mim um espelho em que me revi e em que observei, no seu reflexo, a vida de muitas e muitas pessoas.
Admiro muito esta autora, que em cada livro me deixa tão encantado, como espantado.
Encantado pela beleza da escrita e pela vastidão de conhecimentos que possuía e espantado por ver como alguém pode tão bem conhecer a alma e a dor humana.
Margueritte tinha 25 anos quando escreveu este belíssimo livro e é admirável como pôde encarnar para nós, em idade tão jovem, a alma de um homem torturado pelos seus dilemas e pelas suas decisões.
Um abraço

Daniel C.da Silva disse...

Olá Amigo :)

Devorei essa carta (O Alexis da Yoircenar). É desse tipo de livros que gosto. E termina de forma belissima. E nunca fala abertamente. É muito bonito... By the way, conheces o "de Profundis" de Oscar Wilde? Diz-me que sim...

Anónimo disse...

'Tá visto que vou ter que ler o Alexis... ;) Abraço!

No Limite do Oceano disse...

Esse pedido de desculpa é intenso e talvez a parte final dele "Peço-te humildemente, o mais humildemente possível, perdão. Não por te deixar, mas por ter ficado por tanto tempo." é que me fez com que desse um outro sentido à expressão "antes só do que mal acompanhado".

Por vezes as más companhias entranham-se e nesses caso as desculpas são mais complicadas de surgirem.

Desculpas à parte, e como já me disseram que eu escrevo sobre coisas que ainda não as vivi, uma coisa não impede a outra, aliás como bom observador penso que quando escrevo é porque sei do que falo...um desabafo meu :-S

*Hugs n' smiles*
Carlos

Socrates daSilva disse...

Pinguim,
Não sei bem o que ando a “arrumar”, mas são palavras que urgem dizer e interiorizar.
Vamos a ver, vamos a ver…
Abraço!


Com senso,
Para dizer a verdade, foste tu que despertaste a minha curiosidade neste livro…
É poderoso e traduz fielmente em palavras sentimentos que pensava serem impossíveis de enunciar.
Abraço!


Daniel,
Mais que belo, é intensamente real e poderosamente sentido.
Em relação ao “de Profundis” tenho pena, mas não posso dizer-te “sim”; quando muito digo “vou procura-lo e vou lê-lo”.
Promessa de curioso!
Abraço!


Vasco,
Vais mesmo ter de o fazer…
:-)
Abraço!


Carlos,
As citações deste livro podem conduzir-nos a muitas associações e conclusões.
Gosto de ler os teus desabafos…
Abraço!

Tongzhi disse...

Não conheço o livro; despertaram a minha curiosidade!!!
Há leituras que têm esse dom, de nos fazer arrumar ideias... muito bom!
Abraço

Violeta disse...

quanto de nós - num ou noutro momento da vida - não gostaríamos de escrever este texto a alguém?

free_soul disse...

"Perdoa-me, não por te deixar, mas por ter ficado tempo demais."- não será o que tantas vezes fazemos?... não deixamos por não ser capazes... e acabamos por ficar tempo demais... Ir ficando é sempre o caminho mais facil...por nao ter coragem de partir!!!

Marguerite Yourcenar...também diz " Quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobreviveu na memória humana." e tantas outras coisas interessantes...

Um beijo

Socrates daSilva disse...

Tongzhi,
Também não o conhecia.
Os livros são das melhores coisas da vida!
Abraço!


Violeta,
Imagino que mais do que eu pensava…
Bjs


Free_soul,
Caminhos mais fáceis versus caminhos mais difíceis; decisões, resultados, consequências e custos.
Obrigado pela partilha de uma frase linda!
Bjs