quarta-feira, 19 de março de 2008

Manhã submersa


O livro de Virgílio Ferreira deu origem a um filme. Trata-se da história de um jovem que prefere mutilar-se por deixar explodir um foguete na mão a fim de ter um pretexto credível para sair do seminário. Trata-se do relato de uma luta intensa entre o corpo e o espírito. Nesta história o corpo acaba por ser mutilado em nome da libertação do espírito.

Com essa história como referência, gostava de vos contar uma história.
Ele nasceu numa boa família. Remediada, mas honrada. Existia amor, comunicação e princípios. Princípios alicerçados numa rotina religiosa bem definida. A vida parecia uma caminhada promissora. Seria muito fácil, seria apenas fazer o certo e evitar o errado.
Mas, ao crescer, surpresa! Gradualmente, viu que sentia e desejava certas coisas que eram pecado. E agora? Algo estava errado. (Toca a corrigir). Usar todas as armas. (Nada). E agora? Ele sabia o que devia desejar e sentir, mas o cérebro e o corpo não lhe obedeciam. Afinal, não temos o poder de escolher o que somos e o que queremos? (foi isso que aprendeu). Bem, a ultima arma do crente é recorrer a quem mais pode, a quem tudo é possível. (Vocês sabem de quem estou a falar…)
Não foram poucas as súplicas, os rogos, e as lágrimas.
“Porquê eu? Porque com tanta gente no mundo tinha que ser eu? Que queres TU alcançar com este teu desígnio? Testar-me? Dar-me o céu? Fazer-me um pecador? Será apenas um teste que após eu aguentar terei uma bênção?
Senhor, tu que tantos milagres fazes… Tantos que, por exemplo, vão a Fátima com colunas tortas, pés de atleta, dores de cabeça e tumores em muitos sítios do corpo e tu os curas. E eu? É só uma pequenina mudança no meu cérebro, daquelas coisas que acho que se chama genes ou cromossomas ou neurónios, sei lá! Mas, que só ao microscópio é que os cientistas vêem. Não podes carregar no botão certo e fazeres-me ser normal? Por favor… “
(Se calhar é porque não me esforço o suficiente. Não faço sacrifícios suficientes, não leio as escrituras o suficiente, não rezo o suficiente. Claro, o problema deve estar em mim…)

Então decidiu levar a sua luta ao limite. Jogou o trunfo mais alto que tinha em mãos. Iria dedicar a sua vida ao que Ele queria, iria ser o mais abnegado possível, abdicar de seus alvos, desprendido das coisas terrenas, de tudo o que fosse necessário.
Teria de humanamente fazer tudo para alcançar a graça de se sentir homem como deve ser. (Não há vitórias sem sacrifícios!)
A vida teria de ser um mapa com as estradas bem desenhadas. Havia objectivos, não havia margem para sentimentos. Os sentimentos atraiçoam e são a razão da perdição.
Ia conquistando a admiração e o elogio dos outros. Mas, não pelo que era, mas pelo que parecia ser. Era um sabor agridoce. Sabia bem em certas ocasiões, mas amargava que doía na escuridão da sua consciência.
Como lhe apetecia gritar: Este não sou eu, sou a imagem que eu fabriquei para me tentar salvar…

Mas, os olhos continuavam a olhar para onde estava o desejo. E os sonhos faziam-no suar e acordar com o coração a bater. (Quando será que esta maldição acabará? Quando terminará a provação?)
A resposta não chega. Passam os dias, passam os anos. Passam desejos de morrer, passam decisões e caminhos sem sentido. Passam pedidos silenciosos de socorro, passam prazeres solitários. O espelho sempre era o local mais difícil de olhar.

Um dia o acumular de tensões faz chegar o confronto.
Quem sou? O que quero? Que quer de mim Deus? Porque se chama pecado a algo só por ser diferente?
Se a fé até ali, tinha dado um rumo, agora não tinha as respostas. Deus estava mudo. Nunca lhe deu um sinal, um sinal de conforto, de força. As dúvidas começam a chegar, tal como a maré a subir. Imperceptível, vagarosa, mas certinha. (Porque não sou ajudado? Porque cada dia é cada vez pior? Porque estou a ser cada vez mais falso? Sou eu que não mereço ou Deus está se borrifando para o meu caso?)
A dúvida começa a transformar-se em desapontamento. O desapontamento inicia o caminho de uma etapa sem rumo. Estar sem rumo trás o sentimento de inutilidade. A inutilidade faz sentir pena de si. (Não há nada mais patético).

Agora nada tem a perder. Ou tem?
Agora quer saber. Se calhar o maior pecado é fingir, mais do que desejar amar de uma maneira diferente da maioria.
A luta entre o corpo e o espírito estará a terminar?

“caminante, no hay camino. Lo camino se hace caminando.”

13 comentários:

João Roque disse...

Meu caro Sócrates
este é de todos os teus posts aquele em que desceste mais ao fundo de ti mesmo (se o estou a interpretar correctamente), quiçá para obteres respostas que nem Ele te conseguiu dar.
Se assim é (e continuando a pensar que o meu raciocínio está certo) é um passo tão corajoso como necessário o que acabaste de escrever.
Gostaria muito, mesmo muito, de te dar um imenso abraço fraterno, meu Amigo.

Special K disse...

Meu caro Sócrates, por coincidência este post até vai um pouco de encontro ao do Pinguim.
Eu perdi a minha fé(que parecia inabalável) logo por volta dos 11, 12 anos, felizmente sem nenhum choque grave. Foi por essa altura que comecei a perceber certas inclinações que não eram as "normais". Ainda hoje sei que não estou a cometer nenhum pecado, mas ainda tenho muitas dúvidas e continuo um pouco baralhado.
Acho que tudo isto faz parte de um processo de crescimento, mas não é fácil.
Eu não sei se Deus existe, mas se tu acreditas que Ele existe e que foi Ele que te pôs neste mundo, então tens também que acreditar que Ele gosta de ti ainda que, aos olhos da igreja sejas um pecador.
Desculpa lá o testamento. Um abraço.

Hydrargirum disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hydrargirum disse...

Sócrates,

E partindo do princípio que tb eu "li" o que devia ler neste post...

Começo citando outro Sócrates, "Eu só sei que nada sei..."... But this much I know:

Se após tanto pedido, tanto rogar, tanta lágrima a Deus, como mencionaste... Ele parece que nada fez....Então, se calhar Ele, quere-te assim! Se Te fez assim...então é assim que Ele te quer...

A Igreja...é feita pelo Homem, criada a partir das mesmas fontes de ignorância, medos e intolerâncias com que o Homem se rege....Logo a religião se reveste dos mesmos contornos humanamente falíveis...
Quem é que te diz que Deus, está satisfeito pelo modo como o Homem Lhe propaga a palavra?

Achas que Deus, criaria assim tantos "objectos de pecado" se aos olhos Dele...não fossem eles Normais?...

Não precisas de perder a tua Fé...é tua e só a ti te diz respeito...é a tua vida...e só se vive uma vez...Deus quer de certeza que sejas na tua vida Feliz!!!!

Um abraço do tamanho do mundo, para o Normal Sócrates da Silva!

:D

Socrates daSilva disse...

pinguim,
Estás concerteza a interpretar correctamente. Parte desta coragem vem da força que a vossa companhia me dá. Em breve direi algo.
abraço recebido. Outro para ti.

special k,
Entendo-te bem. Para ser sincero, estou numa fase de que nem sei o que acreditar. Confesso que estou numa vertigem de sentimentos. Para mim neste momento creio que um grande pecado é fazer mal a outro humano. O resto...
Obrigado. Gosto dos teus testamentos, sejam grandes ou pequenos.

hydrargirum,
Palavras espectaculares que nem o filosofo Socrates diria! Vou pensar bem nelas. Havemos de falar...
abraço recebido. Outro para ti

Manuel Braga Serrano disse...

Sócrates... sócrates... meu caro sócrates, anda cá magano, vá, mete-te dentro dos meus braços (que não abuso) Força, homem! Sê feliz, mesmo que na infelicidade... Ninguém disse que viver seria fácil. Se calhar até é...

Socrates daSilva disse...

manuel,
Só tu para me fazeres rir. Obrigado pela força.
abraço

Outonodesconhecido disse...

Vi o filme há muitos anos e até hoje não o esqueci, foi mais acrecento no meu desprezo pela igreja enquanto instituição.

Socrates daSilva disse...

outonodesconhecido,
obrigado pelo comentário. É de facto um filme significativo também para mim.
abraço

paulo disse...

Confesso que nunca li nem vi o filme mas conheço o argumento. Conheço muitas outras coisas de V. Ferreira e gosto muito. Um dia lá chagarei a este livro.

Quando percebemos que temos alguma coisa de diferente, uma das primeiras reacções é sentirmos que temos um problema, que o erro foi nosso. Vem isto da nossa tradição judaico-cristã de pecado e surgem uma série de perguntas. Eu questionei tantas vezes o meu Deus que, à falta de respostas, o foi apagando, além de que nunca compreendi porque havia ele de ser o castigador daquilo que, foi aprendendo, fazia parte da minha natureza e não contra a minha natureza. Já escrevi, lá no FJ, que no secundário idealizei que silenciosamente teria de encarar a minha orientação com a maior naturalidade possível e que as pessoas haviam de me respeitar pelo que eu era enquanto ser humano e que se percebessem que eu era homossexual respeitá-lo-iam porque isso seria só mais uma característica minha, mas nunca A CARACTERÍSTICA. De certa forma, todos os dias luto por isso e tenho conseguido cumprir o que idealizei, e sem ruído revelo-me pessoa. Claro que algumas pessoas percebem e compreendem, quando não o fazem, passo à frente. Mas este processo teve várias variantes e muito sofrimento, ah se teve. Mas, lá está, o caminho faz-se caminhando!

Um abraço

Socrates daSilva disse...

paulo,
Este processo é lixado. Quando crescemos queremos corresponder a um determinado padrão que nos faça ser aceites. Quando começamos a sentir que o preço é muito elevado para essa aparente "normalidade" começa a queda. Eu gostava que as pessoas que me rodeiam e são parte da minha comunidade me vissem da mesma maneira, fosse qual fosse a minha orientação sexual. Mas, isso não vai ser possivel. A questão é: que preço estou disposto a pagar para viver bem comigo?
abraço

paulo disse...

Acho que te compreendo, Socrates, o preço é demasiado elevado. Mudar de vida? De sítio, de país, não sei, mas nunca é fácil... nunca!

paulo disse...

Está descansado, Socrates, apesar de ser contra a violência também sou adepto do "quem dá também leva", podes ter a certeza!