Ainda tenho que continuar a escrever sobre o assunto do post anterior. O desistir de lutar.
(Não sei se escrever é um acto libertador, ou simplesmente masoquista, em que se mexe na ferida até não doer mais. Mas por vezes sinto que a dor serve como purgante. Se essa ideia não é verdade, então está muito bem entranhada.)
Quando alguém desiste de viver existe o lamento, veraz, de que se perdeu uma vida. Que se abdicou de um bem precioso, inigualável e irrepetível. Penso que é mesmo assim. Igualmente, fica um vazio atroz para quem amava essa pessoa. Quem desiste, pode não pensar nisso, mas é muitíssimo importante para alguém, mesmo com os seus complexos problemas.
Mas, a questão é: será que quem quer morrer está a sentir que deita fora a sua vida? Será que a sua vida, num certo sentido, ainda existe? Ou estará somente a desejar terminar as funções vitais que mantêm um corpo a funcionar? O que é a vida?
Posso falar apenas do que sei pelo que vivo e do que sinto. Não tenho nenhuma outra presunção. Não me cabe analisar o assunto pela visão das ciências humanas. O meu reles testemunho é dizer que sei o que é acordar e amaldiçoar o dia emergente; sei o que é invejar a notícia de que alguém morreu e não termos sido nós. Digo-o com apatia. Nunca tentei o suicídio, mas desejei, em algumas alturas, que a morte chegasse pelos seus próprios meios. E porquê? Porque achava que não vivia, apenas tinha um corpo a funcionar. “O sonho comanda a vida”, diz António Gideão. Se não existe um sonho, somos um exército sem comandante, condenado à debandada perante a batalha da existência do dia-a-dia. Perdemos inevitavelmente.
Lembro-me, ao andar nestes devaneios, quando era pequeno e ia à quinta dos meus avós. Eles tinham um cão amarrado a uma casota; nunca estava à solta. Era alimentado, bem cuidado, mas estava sempre preso a uma curta corrente. Como gostava muito de animais, ia frequentemente para junto dele fazer-lhe festas. Ainda tentei ir passear com ele, mas recebi um forte aviso para não o fazer. Assim, compensava-o por passar algum do meu tempo com ele. O bichinho quando me via aproximar já entrava em êxtase. Delirava cada vez que lha passava a mão na cabeça. Eu pensava, ao olhar para ele nesse estado, como seria horroroso viver assim. Passar a vida preso, embora com o necessário para sobrevivência física. Para a minha mente infantil essa situação era horrível.
Isto para chegar ao ponto anterior. O que é a vida? Considero a vida mais do que o existir. Tem que existir um sentido, algo que a sustente. Se o corpo deve receber nutrientes saudáveis para funcionar bem, a vida, ou chamemos a alma, também. Tenho que saber porque acordo toda a manhã, tenho que saber que contribuo para a felicidade de alguém, tenho que sentir que faço algo, mesmo que pequeno seja, para este mundo ser melhor. São frases comuns e banais, mas incontornáveis. Tenho que sonhar, desejar, ansiar, ter vontade de lutar. Saber quem sou e agir em harmonia com esse conhecimento. Se não for assim, sou um autómato.
Reconheço que a vida nos coloca “correntes” para nos tornar eficientes e parte de uma sociedade cinzenta e produtiva. (Produtiva para quê, a propósito?) Reconheço que quem sonha é incómodo aos demais, com a sua inquietação e delírios. Reconheço que areias movediças da memória, vez não vai, puxam para a auto comiseração. Assim, luto para sentir-me vivo. Para sonhar um pouco. Sem destruir a vida de outros.
No caso que referi, não sei o que aconteceu. Possivelmente ele chegou à conclusão que não tinha margem para sonhar, para caminhar, ou então que o preço ia ser incomportavelmente elevado. Parece que na vida existe por vezes uma espécie de contabilidade. Existe uma coluna para o que faz querer desistir e outra para o que faz querer continuar; uma espécie de ter e haver emocional. Quando as razões positivas são suplantadas pelas negativas, alguns acham que deixa de existir razão para sustentar um corpo. Sim, um corpo, porque sentem que a vida já não existe. Por outro lado, quando existe uma razão para viver, mesmo o mais letal perigo é enfrentado com a força de um titã. Existe fé, razão, sonho, vontade. Isso é a vida. Sem um alicerce assim, por mais pequeno que seja, é dificil existir força.
5 comentários:
Acho que faz todo o sentido este texto, e mais, faz todo o sentido não misturar com o anterior, embora seja o facto relatado que te fez fazer esta reflexão.
O direito que o ser humano tem de ser dono da sua vida é, quanto a mim, inquestionável e por motivos vários, entre os quais os mais discutidos são o suicídio e a eutanásia; o filme "Mar Adentro", relatando um caso verídico veio, de certa forma, esclarecer que neste caso, é um acto de coragem, mas principalmente um acto de amor, ajudar alguém a desligar-se de uma vida que já não é vida, é apenas dor, manifestada de forma variada; daí, eu ser, sem reservas a favor da eutanásia.
Já quanto ao suicídio, é um caso diferente, e não deve ser praticado apenas por um caso fortuito da vida, embora muito gravoso; isso seria como tu disseste, e bem, desistir e a palavra desistir traz consigo sempre uma carga negativa; mas quando um facto se torna habitual e leva a que uma pessoa não o consiga ultrapassar, então o suicídio apresenta-se, por vezes, como a solução; uma solução que nunca é pensada gratuitamente, pois acabar voluntàriamente com a vida, é demasiado forte para ser gratuito; coragem ou cobardia?
São as duas teorias que se põem a quem decidiu acabar com a vida; para mim, será sempre de coragem, até porque embora compreenda o suicídio, na minha maneira de ser, penso nunca ser capaz de o fazer. Posso como tu, em momentos de desepero, desejar não existir, mas nunca implica, esse pensamento, uma real e activa efectivação.
Abraço muito forte e muito amigo.
Há ocasiões, e pelo que já te disse antes, em que o discurso me falha... Mas, e a propósito, agradeço a tua resposta ao meu comentário anterior. Abraço!
Texto profundo carregado de dor, sentimento e respeito pelo próximo.
Espero que encontres em cada dia a força necessária para viveres, mas por ti próprio...
Nestas coisas do acabar com a vida, eu sou um bocado cobarde! Penso que a vida é um dom, que devemos viver até ao dia final.
Contudo, quando reflicto de um modo menos apaixonado, acabo por perceber que há "certas vivas" que não fazem sentido, que são um peso demasiado para qualquer um carregar...
Também penso que, apesar de todas as vicissitudes, acaba por ser um acto de imensa coragem por fim à vida.
Pinguim,
Este é um tema difícil de falar, por diversas razões. Penso mais nele quando assisto a situações em que pessoas desistem de viver. Coragem? Cobardia? Cada caso é um caso, como cada pessoa é diferente de outra e como não existem duas situações semelhantes.
Obrigado pela tua reflexão exposta no comentário.
O filme “Mar Adentro” deixou-me muito que pensar também…
Obrigado pelo teu apoio e amizade.
Abraço!
Arion,
Obrigado pela tua presença neste post.
E nada tens que agradecer. Escrevi o que realmente sinto.
Abraço!
Violeta,
Obrigado! Tenta-se, tenta-se…
Bjs
Tongzhi,
A vida é complexa. Não pretendi defender uma posição sobre o suicídio, apenas desabafar. Creio que viver não deveria ser uma dor tão grande que alguém preferisse desaparecer. Isso é tão injusto e trágico!
Por vezes acho que há pessoas que apesar dessa dor intensa, continuam pelos outros. Também as admiro como tremendamente corajosas. Viver nessas condições é difícil mas torna-se um acto de amor.
Abraço!
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