quinta-feira, 12 de junho de 2008

A minha praia

Existem locais assim. Míticos e obrigatórios na vida de uma pessoa. Retalhos de terra onde algo marcou a nossa existência. Locais onde necessitamos regressar física e mentalmente, como se uma especie de ritual fosse; para tentarmos encontrar uma espécie de bússola que nos indique uma espécie de futuro. Com os pés enraizados nesse espaço, desejamos respirar as vivências e as memorias que aí flutuam.

Um desses meus locais é uma praia. Uma linda praia, diga-se de passagem.

Começa por ser um dos ícones dos meus tempos de inocência. Os verões de uma criança a correr pelo areal, a fazer castelos de areia, a apanhar escaldões e a pedir insistentemente gelados e bolas de Berlim que os vendedores apregoavam. Que tanto brincava, como zangava-se com os amiguinhos que nesse dia estivessem disponíveis. Tempos de um ritmo sem relógio, de uma agitação inspirada pela brisa, de corridas e lutas com as ondas. São das memórias onde mais gosto de me refugiar, de me esconder. São a pureza que por vezes tenho que ir buscar para tentar limpar-me. Para tentar esfregar arduamente a minha pele e pensamentos. Por isso este local encerra um dos maiores tesouros da minha existência.

Ambiguamente, foi um local cruel também.

Foi onde, até agora, conheci mais de perto a morte. Já adolescente, num dia de marés traiçoeiras, fui arrastado confusamente para o alto mar. Tentava gritar por ajuda, mas o mar teimava em calava-me a boca com a sua água salgada. Em desespero instintivo comecei a bracejar como pude. Foi o que me salvou. A última imagem que recordo foi de duas pessoas a lançarem-se ao mar na minha direcção. Depois, o sufoco do sal, a flutuação de um desmaio gradualmente imposto. Recordo de acordar no areal com muita gente á minha volta, a massajarem-me, a darem-me bebidas quentes e até aguardente. Fui a triste estrela do dia naquela praia.

Medito nesse dia. Por vezes arrisco a pensar se não teria o destino determinado que essa deveria ter sido a data, e essa a maneira, de encerrar a minha existência. Mas, alguém lhe deu a volta. Hoje, tantos anos depois, penso ocasionalmente nas dores que poderiam ter sido evitadas para mim e para outros se o mar tivesse feito bem o seu trabalho. Que solução tão simplesmente prática para um problema que ainda não tinha assomado na totalidade do seu esplendor. Não é todos os dias que penso assim, mas penso…




Gosto de ir lá no verão. Esta praia pode estar a abarrotar de gente que ainda parece que está vazia. É bom ela ser assim. Não gosto de me sentir apertado em praias pequenas. Gosto da sensação de imensidão. Gosto também da serra por cenário.

Mas gosto ainda mais de ir lá no Inverno. É mais minha. Gosto de ver as pessoas a passear com os seus cães, gosto de ver os pais a ensinar aos filhos a içar um papagaio de papel, gosto de molhar os pés enquanto caminho, gosto de me sentar nas ruínas de madeira dos bares que descansam do verão e observar. Gosto da solidão com corpo de maresia e com alma de areia.

Inocência, morte e solidão. Que palavras aparentemente tão incomuns para se conjugar com a palavra praia.

Com a minha praia.

10 comentários:

Anónimo disse...

Que linda que é a tua praia pelos teus dedos!...
Nota-se que é um dos teus lugares mágicos, demasiado teu para perceberes que também é dos outros.
Há-de ser sempre a tua praia, mesmo que um dia longínquo, ao fechares os olhos, a recordes como um menino recorda o carinho da mãe.

Mas olha, meu Sócrates da Silva, apetece-me puxar-te as orelhas, sabes?! Que era o que tu merecias agora, por andares a pensar na "morte da bezerra" - salvo seja!
Andaste demasiado ao sol na praia e deu nisto. Se o mar não cumpriu é porque não tinha prometido. Se o mar não quis, é porque estás mais para aqui do que para lá. Se Deus não quis é porque tens uma missão - seja lá o que isso signifique - que me palpita que irás cumprir: ser um homem que bem se pode orgulhar de si mesmo. Ora toma! ;)

Doravante, para falares da(s) tua(s) praia(s), é para nos brindares com optimismo, com força, com confiança.
(Não é para "morrer na praia...") :)

Anónimo disse...

Conheço bem a sensação de ter outra oportunidade, como que dada por não sei que entidade que nos concedesse essa benesse depois de dura provação. Um dia conto-te... Faz-nos valorizar muito mais a vida e relativizar a presença - inevitável, até para nos confirmar - de todos os calhaus (com olhos, alguns) que tentam abrandar-nos a viagem. Continua a navegar! E que bem que o fazes neste tão belo texto!

Special K disse...

Também vinha para te puxar as orelhas mas acho que o Catatau já disse tudo, apenas vou reforçar as palavras dele.
Também tenho paixão por algumas praias. tentei reconhecer esta mas não consegui.
Um abraço e vê lá se deixas de pensar em disparates.

Maurice disse...

Ui, ui, ui.... que temos aqui? Um texto tão bonito e depois vai-se a ver, e o meu amigo Sócrates começa a descambar!!! Arrebita, rapaz! O sol e a praia continuam à tua espera. E muitas outras coisas mais!

Abraço

TUSB disse...

Gostei muito do teu texto, também tive um pequeno acidente envolvendo água, mas podemos dizer o contrário do teu... eu, com uns 7 ou 8 anos estava a brincar e a correr em cima da pequena camada de gelo que se tinha formado em cima da piscina do meu vizinho, quando o gelo partiu, e o meu casaco assim como o pesado pullover ao encherem-se de água me levaram directamente para o fundo da piscina, sem saber nadar, fui me arrastando debaixo de água até á pequena escada e consegui sair, calmamente, encharcado em água gelada... das poucas vezes que fiz uma tremenda parvoice e não fui castigado com umas boas palmadas haha, suponho que o susto tenha sido castigo suficiente para todos.

O Fugitivo disse...

Meu caro Sócrates daSilva

Não resisto a comentar este teu texto. Tão forte e tão belo!
O confronto com a morte é sempre um momento interpelante e provocador da demanda de novos sentidos para a vida.
Como eu sei disso! Sabes que sei!

Um grande abraço
deste teu amigo que há uns tempos se resolveu dar por
Fugitivo

João Roque disse...

Todos temos a nossa praia, mas a tua está descrita de uma fortìssima sensação de recordações talvez ambíguas...
A tua hora e "as tuas horas" chegarão quando soar o seu tempo.
Abração.

Socrates daSilva disse...

Catatau,
Puxa, puxa…
Mas, olha que há dias em que não se consegue disfarçar o que nos consome! Gostava mesmo de um dia sentir esse orgulho que falas.
Obrigado pela confiança. Um abraço


Arion,
Conta-me quando puderes. Já sabes que nenhumas das tuas palavras caem em “saco roto”
Obrigado. Abraço


Special K,
A orelha direita já está vermelha, só se ficares com a esquerda…
:-)
Abraço


Maurice,
Eu sei meu amigo! Mas, ás vezes a “torneira” da alma tem que se abrir. Prontos, hei-de ir apanhar sol a ver se melhoro…
:-)
Abraço


Unfurry,
Também tu andas-te a “navegar”? Ainda por cima com gelo? Merecias umas palmadas, mas era para aquecer…
Abraço


Fugitivo,
(Oh, meu amigo, que exagero! São só desabafos.)
Quando pensamos que perdemos tudo é que avaliamos as coisas com genuinidade. Embora na altura eu ainda não pensa-se muito na vida, por ser um “teenager inconsciente” mas o trauma têm-me feito companhia…
Um grande abraço


Pinguim,
Obrigado pelo elogio… as memórias são de factos fortes.
(Boa continuação de férias...)
Abração duplo

SP disse...

Tudo tão belo que não digo mais nada.
Deixo-te este abraço...

Socrates daSilva disse...

Sp,
Obrigado!
Pelo abraço e pelo elogio. Andas a habituar-me mal...
Abraço